Sonhos reciclados durante a pandemia

O cenário era desanimador. Em março de 2020, pouco se sabia sobre as principais formas de transmissão do novo coronavírus. Naquele primeiro momento, acreditava-se que tocar superfícies supostamente contaminadas seria o suficiente para infectar qualquer pessoa com a doença. As cooperativas de reciclagem tinham de se preocupar tanto com a saúde dos cooperados quanto com a continuidade dos negócios. Afinal, por todo o país, diversos municípios publicaram decretos proibindo a coleta seletiva, fechando os galpões das cooperativas ou até mesmo obrigando os resíduos recicláveis a passar por uma espécie de “quarentena” até que os supostos vírus que poderiam estar neles morressem. Com isso, milhares de catadores se viram ameaçados de ficar sem fonte de renda por todo o país.

Mais de um ano depois, o panorama é completamente diferente. As cooperativas retomaram suas atividades, afastaram apenas os cooperados que eram considerados de risco, adotaram novas práticas sanitárias e de distanciamento social e, com mudanças no mercado, agora faturam o mesmo, ou – em alguns casos – até um pouco mais do que antes da pandemia.

Os resultados têm sido surpreendentes. Até o momento, as principais cooperativas registraram poucos casos de contaminação entre os cooperados e nenhuma hospitalização ou morte por Covid-19.

“Eu podia falar que foi ruim, é a história que todo mundo conta; só que pra gente teve momentos ruins, mas também teve momentos bons. Quando a pandemia começou, e ninguém sabia como ia ser, o governador do Distrito Federal editou uma portaria proibindo a coleta seletiva na capital e no entorno. Ficou complicado, porque temos 11 contratos de coleta seletiva e atuamos em 15 cidades do DF. Em quase metade dos municípios e no entorno de Brasília, a coleta é feita por cooperativas”, explica Cleusimar de Andrade, da Cooperativa Recicle a Vida, coordenador da recém-criada Câmara Temática das Cooperativas de Reciclagem da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Segundo ele, a categoria conseguiu, junto ao governo distrital, se equiparar aos garis como prestadores de serviços essenciais e, dessa forma, teve acesso aos auxílios financeiros concedidos para os trabalhadores que precisaram ficar em casa. Cerca de três meses depois da restrição, os cooperados puderam voltar às atividades.

“Quando começamos a ver que o vírus não se espalhava pelos materiais, começamos a nos organizar para voltar. Nas cooperativas, onde trabalhamos em esteiras, passamos a fazer distanciamento, a trabalhar usando máscara, EPI, luvas. Com mais segurança, foi possível trazer mais gente”, relembra.

CRESCIMENTO

Mas, como ficou a renda dos cooperados? De acordo com a pesquisa Ciclosoft 2020, em 545 cooperativas, no ano de 2019, a maioria dos catadores tinha renda entre um e dois salários mínimos (42,99%); na pesquisa de 2020, , realizada de julho a outubro, 58,72% dos cooperados relataram uma queda na renda, 20% permaneceram na mesma faixa e, por incrível que pareça, quase um a cada oito (12,48%) passou a ganhar mais. 

Para Cleusimar, esse aumento deve-se ao fato de que o perfil de consumo dos brasileiros – especialmente nas grandes cidades – mudou ao longo da pandemia. Com mais gente ficando em casa, mesmo que o isolamento não tenha sido observado em todo o território nacional, mais e mais pessoas começaram a comprar produtos pela internet, tanto por delivery de alimentos como outros produtos, como eletrodomésticos, roupas e móveis.

“Isso ajudou a melhorar a situação, porque as pessoas começaram a gerar mais resíduos, ter mais embalagem e, ao mesmo tempo, veio a questão do mercado internacional, que diminuiu a importação de matéria-prima, e o material reciclado aumentou de preço. Alguns produtos quase dobraram de preço, como o papelão. O ferro, que era vendido a cerca de R$ 300 a tonelada, foi pra mais de R$ 1.100. Foi uma oportunidade pra melhorar a renda”, reconhece.

Apesar dessa boa notícia,  o crescimento do setor de reciclagem não foi igual em todas as áreas. Nas cooperativas com pessoas mais velhas ou com comorbidades, o trabalho praticamente foi paralisado; também foi preciso criar campanhas de ajuda para os cooperados afastados por questões médicas, como conta Aline Souza da Silva, presidente da Rede de Cooperativas de Catadores de Materiais Recicláveis do DF (Centcoop).

“A gente trabalha para não precisar dessas coisas, para ter dignidade. Mas, para esses que ainda não podem voltar, fazemos campanhas, adquirimos cestas básicas, cestas de produtos de limpeza”, conta ela. As cooperativas vinculadas à Centcoop também têm recebido auxílios na forma de doações de máscaras, EPIs, álcool em gel e outros insumos para que possam desenvolver suas atividades com segurança.

LONGE DA CAPITAL

Em São Paulo, cidade que conta com duas importantes centrais mecanizadas de triagem, as cooperativas associadas que têm contratos com a prefeitura conseguiram manter mais de 1.000 catadores afastados, com um auxílio que chegava a R$ 1.200 por mês, durante quase todo o ano de 2020. Quem explica é o presidente da Cooperativa de Coleta Seletiva da Capela do Socorro (Coopercaps), Telines Basílio do Nascimento Jr, o Carioca.

“Essas duas centrais mecanizadas absorveram todo o resíduo reciclável da cidade. Foi com as vendas delas que a gente conseguiu manter os cooperados em casa dando o auxílio. Por elas serem mecanizadas, precisam de um contingente menor trabalhando”, detalha.

A vida das cooperativas que não contam com esse tipo de convênio, no entanto, foi um pouco mais difícil. 

“As cooperativas que não têm nenhum relacionamento com a prefeitura ficaram numa situação delicada; algumas conseguiram o auxílio do governo federal, outras não. Para essas, a gente precisou fazer uma vaquinha para auxiliar”, diz o dirigente.

Para os próximos meses, os líderes das cooperativas de reciclagem paulista esperam que o preço dos materiais fique mais próximo dos patamares antigos. Com isso, esperam se proteger de eventuais perdas nas rendas dos cooperados.

“Agora o preço está começando a voltar ao normal e estamos nos preparando para voltar a crescer. A gente faz a comercialização de maneira centralizada para conseguir um preço melhor. Nosso objetivo é atender à indústria e chegar neles antes que o mercado volte à normalidade”, explica Aline. Para ela, a proteção de uma negociação conjunta por meio da Câmara Temática de Reciclagem da OCB pode ser fundamental para isso.

EM DEFESA DOS COOPERADOS

A criação da Câmara Temática das Cooperativas de Reciclagem dentro do âmbito da OCB, em março deste ano, pode se tornar um ponto de virada para o setor em um futuro próximo. A possibilidade de ter um fórum específico para definir pautas estratégicas e  poder negociar de maneira coletiva com fornecedores, clientes e o poder público representa um avanço na agenda dessas instituições.

Atualmente, a OCB representa um total de 97 cooperativas de reciclagem em todo o Brasil, com cerca de 3 mil cooperados em 11 estados brasileiros e no Distrito Federal. Todo o processo de implantação da Câmara foi feito remotamente, segundo Alex Macedo, analista técnico e econômico da organização.

“Até então, a gente não tinha um espaço institucional formalizado pra poder ouvir os representantes, saber necessidades, anseios, questões que envolvem o poder público, problemas de gestão e confiança. A gente começou tudo de forma on-line; no ano passado ainda não tinha a possibilidade de fazer presencial, toda a articulação e as reuniões foram feitas de forma remota”, relata.

Os objetivos da Câmara, segundo ele, são buscar uma aproximação com o Ministério do Meio Ambiente, com o setor de embalagens, para tratar a questão da logística reversa, e também com o Congresso Nacional, para abordar questões e monitorar leis e projetos para o setor, além de garantir a segurança jurídica e ver oportunidades para os cooperados.

“Nós temos sentido essa aproximação. As pessoas viam a gente como miseráveis, coitadinhos, queriam fazer doação. Agora, que começamos a nos organizar realmente como empresas, começaram a nos enxergar de outra forma. Essa câmara nos coloca essa forma de nos organizar e não sermos excluídos”, explica o coordenador da Câmara Temática.

Para Aline Souza, da Centcoop, a negociação coletiva tende a fortalecer todo o setor, inclusive no momento de conseguir preços melhores para os materiais que são reciclados pelas cooperativas e revendidos para o setor industrial.

“Antes da pandemia e de a rede ser inaugurada, o pessoal vendia o papelão a R$ 0,35, o quilo; agora, subiu para R$ 1,50. A gente sabe que na indústria não custa menos de R$ 3. Esperamos que a Câmara Temática da OCB nos ajude a fortalecer o nosso trabalho e a coleta seletiva. E uma parte importante disso é a gente trabalhar pro produto não ser tributado novamente, senão fica inviável”, alerta.

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Esta matéria foi escrita por Fábio Fleury e está publicada na Edição 34 da revista Saber Cooperar. Baixe aqui a íntegra da publicação

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