Líder nato e pé no chão

Ele afasta a cadeira de rodinhas para deixar à vista a foto que está no aparador, encostado na parede. Meio de lado, olha para trás e aponta para o senhor que está emoldurado no único porta-retratos à mostra. Márcio Lopes de Freitas apresenta seu pai: Rubens de Freitas. É quando tira os óculos, se acomoda confortavelmente na cadeira e apoia o cotovelo na mesa. Lá vem história! Márcio gosta de contar “causos”, e o de sua família é um deles. 

Em casa, foi onde tudo começou. Márcio é cooperativista, produtor agrícola e cafeicultor. Também é presidente do Sistema OCB desde 2001. A vocação para tocar a terra e liderar as cooperativas é herança familiar. Justamente o caminho que ele percorreu até chegar à cadeira da presidência da Casa do Cooperativismo, que ele começa a contar pela trajetória do pai.  

Mas, antes de falar de seu Rubens, é preciso falar do avô de Márcio. Foi seu Zeca quem apresentou, à família e aos colegas de lida, ainda nos anos 1940, o conceito de cooperativa e a ideia de que, quando o assunto é cooperativismo, todos ganham quando ninguém perde.

Zeca produzia leite na pequena cidade de Patrocínio Paulista (SP) e vendia o produto a dois fornecedores que transformavam a matéria-prima em queijo. Até o dia em que um deles, o italiano, tornou-se o único comprador e quis reduzir o preço do litro. 

Seu Zeca não aceitou a proposta e decidiu, ele mesmo, produzir os queijos e vendê-los em Franca, a maior cidade perto de sua fazenda. Foi aí que ouviu falar em uma “tal” cooperativa e entendeu que poderia se unir aos demais produtores locais para juntos gerenciarem os próprios negócios.

Eles convidaram um técnico da Secretaria de Agricultura de São Paulo para apresentar aos produtores como aquilo funcionava. Meu pai contava que, no meio da reunião, o italiano apareceu, querendo saber o que estava acontecendo. Foi quando meu avô disse: ‘Estamos decidindo o nosso futuro!’”, relembra. 

Coube a Rubinho, o senhor Rubens que ainda era um menino, a tarefa de distrair o estrangeiro e levá-lo ao pomar “para chupar umas laranjas”, por ordem do pai. Até que a reunião acabou e ficou decidido pelos 44 agricultores das redondezas que nasceria ali, a partir daquele dia, uma cooperativa de leite.  

Desde então, a família Freitas produz e trabalha de forma cooperativa. Rubens cresceu, virou um líder e dedicou-se a melhorar as condições das coops de leite e de café no interior do Brasil. A mãe dele, avó de Márcio, tinha “cismado” que o menino deveria ser padre, mas ele fugiu das obrigações da batina e tocava as produções com o tino e a sabedoria da experiência. “Ele falava que o único diploma que tinha na vida era o de primeira comunhão, porque era obrigado a ter”, conta Márcio, rindo. 

O negócio passou de pai para filho e, depois, para os netos. Márcio foi criado em fazenda. Cresceu produtor agrícola e cafeicultor. Também transformou seu trabalho em uma missão, para fortalecer o conceito do coop no Brasil e pelo mundo. Aos 63 anos, acredita que esse modo cooperativista de fazer negócios é o segredo de sucesso pessoal e profissional da humanidade.  

Márcio com o pai e irmãos

“O modelo salve-se quem puder, a lei de levar vantagem, não está trazendo felicidade para as pessoas. A filosofia do cooperativismo é uma luva para este momento de insatisfação. Trata-se de uma economia compartilhada, em que as pessoas tomam as decisões dos rumos de seus negócios. Elas já não querem mais ser passageiros do processo. Elas querem ser autoras”, defende.  

 LIDERANÇA RECONHECIDA

Ao lado da foto do pai, no aparador que fica na sala da presidência do Sistema OCB, Márcio exibe alguns troféus. Desde que a assumiu a gestão da Casa do Cooperativismo, tem sido condecorado e reconhecido pelo seu trabalho. Uma lista de predicados, entre os quais citam-se a capacidade de articulação e de debate. Em 2009, o cooperativista foi considerado líder no diálogo com o Congresso Nacional — missão que resultou na aprovação da modernização da Lei Brasileira de Cooperativas Financeiras e, em 2012, na criação da Lei nº 12.690, que definiu novas regras para a organização e para o funcionamento das cooperativas de trabalho.  

Em 2017, a convite das Nações Unidas, Márcio participou do Fórum Político de Alto Nível, em Nova York, e, desde então, o Sistema OCB tem sido parceiro de diversos projetos da ONU para promover os objetivos de desenvolvimento sustentável entre as cooperativas.  

Dois anos depois, foi condecorado com o prêmio Distinguished Service Award (Serviço Distinto) do Conselho Mundial das Cooperativas de Crédito (Woccu), em reconhecimento a sua liderança e por seu esforço de disseminar o segmento no Brasil e no exterior.  

Aliás, criar parcerias entre países como forma de fortalecer as cooperativas é uma das bandeiras de Márcio. Por isso, ele defendeu a união dos países do Mercosul para promover o comércio entre cooperativas de região e foi um dos fundadores, em 2001, da Reunião Especializada de Cooperativas do Mercosul (RECM).   

No comando do Sistema OCB, Márcio se pronunciou em vários idiomas e estabeleceu acordos com a Confederação Alemã de Cooperativas (DGRV) e com líderes cooperativistas de Botsuana, Argélia e Timor-Leste. 

Freitas implementou um projeto bilateral para fortalecer as cooperativas de Moçambique e, durante seu mandato, em 2010, o Sistema OCB sediou o Primeiro Encontro de Cooperativas dos Brics, estreitando relações com Rússia, Índia, China e África do Sul.  

O movimento cooperativista brasileiro está muito parrudo, muito expressivo e se posicionando internamente de maneira muito forte. Com isso, também há a tendência de internacionalização das nossas cooperativas, seja na área financeira, na área de saúde ou na área agrícola. Cada vez mais, as cooperativas vão precisar de relacionamentos globais”, defende ele, que também é vice-presidente das Américas da Organização Internacional das Cooperativas Agropecuárias (Icao). 

NOVOS DESAFIOS

Para fortalecer ainda mais a presença das cooperativas brasileiras no cenário internacional, Márcio assumiu um novo desafio: agora, é conselheiro da Aliança Cooperativa Internacional (ACI). Com sede em Bruxelas (Bélgica), este organismo internacional representa mais de 50 mil cooperativas e mais de 300 milhões de cooperados de todo o mundo.
O presidente do Sistema OCB foi indicado pela experiência e pelo perfil visionário. E por ser uma “pessoa rara”, como define o ex-presidente da ACI e atual coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas, Roberto Rodrigues.

O presidente do Sistema OCB foi indicado pela experiência e pelo perfil visionário. E por ser uma “pessoa rara”, como define o ex-presidente da ACI e atual coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas, Roberto Rodrigues. 

O cooperativismo é um movimento perfeito para a natureza humana, pois une idealismo, solidariedade, ação comunitária e coletiva, mas também construção e ação. O líder cooperativista tem que somar essas duas metades de maneira absoluta e transformá-las em filosofia de vida. Márcio faz isso na perfeição. Ele traz isso na genética”, define Rodrigues, único líder não europeu a presidir a ACI, entre os anos de 1997 e 2001. Ele também é presidente da Academia Brasileira de Ciências Agronômicas e embaixador Especial da FAO para Cooperativas.   

Caso vença a eleição da ACI, em junho, Márcio pretende intensificar a rede de negócios entre cooperativas de todo o mundo. “As cooperativas brasileiras já vendem soja, carnes, frango, por exemplo, para cooperativas internacionais, mas queremos estreitar ainda mais e melhorar a nossa relação, bem como ter mais acesso aos mercados globais do sistema financeiro. Uma coop brasileira de crédito, ao se associar a bancos internacionais, será capaz de fazer negócios internacionais com mais facilidade. Para o Brasil crescer, precisamos de investimento, e as linhas de crédito e o sistema financeiro são insumos extremamente importantes.”  

Entusiasmado com a possibilidade de fortalecer o coop internacionalmente, o presidente do Sistema OCB não quer nada menos do que a vitória na ACI. “A gente, em uma eleição, só não quer perder. Eu não gosto perder nem no par ou ímpar”, brinca.  

HOMEM DO CAMPO

Márcio fala pausadamente. Fala baixo. Coisa de gente calma. Quem o conhece diz que seu tom é sempre o mesmo. Não muda. “Esquentar a cabeça, para quê?”, questiona enquanto tenta acessar o link de mais uma reunião on-line

A calma é de quem nasceu e cresceu na roça. Márcio veio de Patrocínio Paulista (SP), em meio a gado e à plantação de café. Nos anos 1970, fundou uma cooperativa de café na terra natal.   Para Brasília, mudou-se aos 17 anos, com o pai, que, a essa altura, era presidente da Confederação Brasileira das Cooperativas de Laticínios, com sede na capital. Aqui, formou-se em administração de empresas, investiu na carreira e firmou o nome no cooperativismo. E criou seus os dois filhos, que hoje têm 39 e 33 anos, respectivamente. “Aqui é ‘bão’ demais!”, brinca, carregando no sotaque. 

Mas o afeto pela cidade onde mora não diminui o banzo das origens. “Eu adoro a fazenda. Eu sou agricultor. Sinto muita falta de estar perto da terra e das minhas criações”, comenta. 

Márcio com os Irmão Adriana, Juvenal e Eduardo

As duas fazendas dele ficam no interior de São Paulo, a quase 800km da capital, onde planta café, lavoura branca e cria alguns tipos de gado. O plano é adquirir uma propriedade por aqui, tão logo seja possível. Para matar a saudade da terrinha, nos fins de semana, Márcio entra na caminhonete e vai desbravar a área rural nas proximidades de Brasília. Olha os anúncios de venda e agenda uma visita. Em parte, uma boa desculpa para conhecer as redondezas, mas também para trocar uns dedos de prosa e tomar um café.

Márcio é amante inveterado do grão. Além de produzi-lo, consome com gosto. Quase um litro por dia. A xícara de louça ágata, decorada em arabescos pretos, é mantida sempre cheia. O utensílio foi presente de um amigo, que a trouxe do Museu do Café, de Santos. “Gosto dela”, diz. 

Recentemente, começou a fazer uma dieta e logo a nutricionista sentenciou: “Um litro de café é demais”. Ele nem questionou a proibição, mas presenteou a profissional com um quilo do café produzido na fazenda dele. “Este aqui é diferente. Pode tomar”. E ela cedeu.

Márcio concorda que café é bom, mas tem que ter “paladar” e “qualidade de origem”. Quando lhe perguntam se ele prefere a bebida mais forte ou fraca, nem titubeia: “Gosto é de muito”, responde, rindo. 

APOSTA NO FUTURO  

Crédito: Revista Globo Rural

Nas andanças pela região rural da capital do país, Márcio se depara com todo tipo de história. Lamenta ver algumas propriedades abandonadas, cenários que são só a sombra do espaço produtivo que foram em outros tempos. 

Dia desses, conheceu um senhor que, ao completar 80 anos, viu-se obrigado a vender a bela propriedade no campo porque nenhum dos filhos quer tocar os negócios. Assim, preferiu ele próprio escolher, ainda em vida, quem ficaria com a casa e com as terras cuidadas por ele com tanto capricho ao longo dos anos. Ainda que a escolha fosse por alguém fora da família, interessado em comprar a propriedade. 

Para o presidente do Sistema OCB, histórias como essa são lamentáveis. Afinal, o futuro do cooperativismo está na mão dos jovens; por isso mesmo, Márcio busca maneiras de atraí-los para o nosso movimento. Em 2019, após a realização do 14º Congresso Brasileiro do Cooperativismo (CBC), ele deu todo o apoio à criação do comitê de jovens, que têm poder de decisão e de participação efetiva no planejamento de ações. 

Márcio quer ouvir a opinião fresca e dar voz à juventude.

Eles querem participar. Quem pensa que o jovem está no celular o dia inteiro, até com certo exagero, se esquece de que ele está se comunicando, se informando, absorvendo e transformando informação internamente. Vejo que eles querem transformações, modelos de negócios diferentes, como o cooperativismo, que propõe o compartilhamento de economia e a participação nos resultados.”

Só para se ter uma ideia da promessa que representa a juventude no cenário do cooperativismo brasileiro, Márcio reforça que o grande diferencial da produção agrícola no Brasil não está relacionado a questões climáticas ou geográficas, mas o sucesso se deve ao perfil do agricultor, que tem menos idade do que no resto do mundo. Em nosso país, este profissional tem, em média, 44 anos. Na Europa, ele é 28 anos mais velho. Isso se traduz em trabalhadores mais dispostos e conectados, e desenha um nicho de mercado atraente. “A agricultura brasileira é almejada como um mercado de trabalho interessante, como bom gerador de renda.”

EMPATIA

Márcio com a esposa

As mulheres são outra aposta deste líder para o incremento do cooperativismo. Na gestão de Márcio, elas também ganharam um comitê e espaço para se posicionarem e contribuírem. A visão sustentável da economia e a habilidade de serem multitarefas são algumas das características femininas indispensáveis ao movimento.

Na lista de outros valores importantes para o cooperativismo estão a empatia, a coletividade e o apoio mútuo. As pessoas valem por serem únicas e individuais, não pelo capital financeiro que representam. Não importa o percentual, elas terão sempre o mesmo poder de decisão.

Para Roberto Rodrigues, “um movimento perfeito para a natureza humana, pois é composta por corpo e alma, matéria e espírito, assim como o cooperativismo é feito de idealismo e de construção, de sonho e de resultados”.

O sétimo princípio do cooperativismo, que prega o “interesse pela comunidade”, é uma das causas defendidas por Márcio. Pensando nisso, ele nacionalizou um importante programa de voluntariado que já mostrava sua força em Minas Gerais, onde foi criado e batizado “Dia da Cooperação” ou “Dia C”, pelo Sistema Ocemg. A proposta é estimular líderes cooperativistas a trabalharem em prol de suas comunidades — o que beneficiou, só em 2021, mais de 5 milhões de cidadãos.  É derrubar, por meio de ações, a arraigada cultura do individualismo. 

Um modelo de ganhos coletivos, baseado em trabalho e renda, visto como solução para o atual momento de crise econômica e até mesmo para o conflito pessoal que o mundo atravessa. Um movimento que reúne, atualmente, 17,2 milhões de brasileiros cooperados, e cerca de 4,8 mil cooperativas no Brasil. 

A incapacidade, do modelo social que nós temos, de gerar felicidade, está fazendo as pessoas olharem para novas alternativas. O cooperativismo acaba sendo um porto seguro, porque você trabalha a questão dos valores, os princípios de um desenvolvimento econômico, vamos dizer assim, com caráter, que ajuda a transformar a sociedade e gerar um desenvolvimento propício à justiça social e à prosperidade”, defende Márcio. “A sociedade quer, cada vez mais, um modelo diferente de qualidade de vida. As pessoas querem ‘ser’ mais do que ‘ter’ mais”, acrescenta.    


Esta matéria foi escrita por Flávia Duarte e está publicada na Edição 38 da revista Saber Cooperar. Baixe aqui a íntegra da publicação


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